Ele há locais que nos conduzem a uma dúvida muito particular. Por um lado, merecem honras de extensa divulgação, de tal forma se nos apresenta como um digníssimo cartão de visita. Por outro, entram diretamente para a lista de locais a proteger da imensidão humana.
A diversidade ecológica oferecida pela Ilha da Morraceira obriga a esse cuidado extra, ficando assim escrita esta nota inicial de importância acrescida.
Ao contrário das ilhas paradisíacas rodeadas de um oceano imenso e banhadas por praias de areias finas e brancas e águas quentes, que não raras vezes encontramos em filmes e fotos e, uma vez por outra, numa realidade temporária, a Ilha da Morraceira foi cercada por águas de forma bem peculiar.
A certo ponto da história, a natureza decidiu que o seu amigo Rio Mondego encetasse um desvio alternativo no seu curso, dividindo-se em dois, para poucos quilómetros mais à frente, aquele braço derivativo (a que alguns chamam de Rio Pranto) voltasse a encontrar o leito principal – como se de uma corrida de crianças se tratasse – antes de desaguar definitivamente no Atlântico. A observar esta brincadeira, no meio, ficou estacionada a Ilha da Morraceira, com cerca de 7 quilómetros de extensão e 580 hectares de área. A Figueira da Foz e seus visitantes agradecem.
Chegámos à Ilha da Morraceira pelas 17 horas de um dia que começou fresco e cinzento, não deixando adivinhar o forte calor que se sentia à hora da partida. O acesso, para quem está na cidade, faz-se inevitavelmente atravessando a Ponte Edgar Cardoso, cortando na placa que assinala Venturas/Estaleiros.
Estamos inseridos num grupo que vai receber uma visita guiada à ilha pelos comandos do Luís Carlos, ele que vai ganhando um justo reconhecimento e respetiva falange de adeptos, pelas suas bem dispostas e bem preparadas caminhadas nos mais belos trilhos do concelho da Figueira da Foz. Siga a sua TimeOff Figueira da Foz no facebook e instagram .
Se as caminhadas costumam terminar com o testemunho de um dos produtores de sal da ilha, desta vez, devido a “compromissos publicitários”, a palestra faz-se logo a abrir as hostilidades. Carlos Moreira (mais conhecido como “Santinho”) explora a sua Quinta da Salina do Morro e encarrega-se de dar uma explicação inicial sobre o processo de produção do sal, sob a censura atenta do guia principal, que tenta evitar spoilers que lhe estraguem o passeio que se seguirá.
Vamos ter tempo para falar do sal. Antes de abalarmos para o início da caminhada, fica o registo de um “escalda-pés”, uma pequena plataforma onde a malta se senta e coloca os pés de molho em água salinizada a escaldar que, dizem e nós acreditamos, tem efeitos terapêuticos e relaxantes. Fica para outra ocasião, que a o escalda-pés está em obras e o sol cá fora escalda que baste.
Arrancamos rumo a uma caminhada que se irá prolongar por 4 horas e meia. Os caminhos são estreitos (cabe apenas um automóvel, espécie rara, que de quando em vez quebra o silêncio instalado na ilha) mas seguros, e cedo se percebe na paisagem a imensa e teimosa vegetação.
Ao mesmo tempo, os talhões – complexos sistemas de reservatórios essenciais à produção do sal – passam a preencher o nosso olhar, qualquer que seja a direção, assim como os armazéns de sal, construídos de forma que se possa medir com alguma precisão a quantidade de sal no seu interior.
Estamos em Julho, plena época da safra. De semana a semana, cada talhão proporciona a oportunidade de originar uma quantidade apreciável de sal, numa primeira fase em forma de flor de sal – a variedade gourmet do sal, de cristais mais translúcidos, mais indicada para temperar saladas – e depois na forma de sal marinho que melhor conhecemos. Recolhido primeiro para os estreitos corredores por onde o marnoto se desloca – as silhas -, formam uma curiosa disposição que se vai tornando comum ao longo da tarde, nunca deixando de captar a nossa atenção, ou não brilhasse de forma tão intensa sob determinado ângulo, fazendo jus ao nome de ouro branco.
Somos encaminhados para junto de uma zona de talhões e temos a oportunidade de receber a lição completa e definitiva da produção do sal, onde se introduzem novos objetos, novas práticas e palavras difíceis, como o ugalho ou o círcio.
A tarde avança calma e serena. É ensurdecedor e regenerador o silêncio que se consegue alcançar na Ilha da Morraceira, apenas quebrado pelas palavras e caminhar do grupo.
Feita a pós-graduação em sal e seus derivados, a atenção vira-se ora para os ares, onde bandos ordenados de garças brancas desafiam os céus, ora para as rentes águas de algumas zonas da ilha, onde os pernilongos e os guinchos comuns se deslocam em passo apressado, momentos antes de descolar rumo a mais um voo fugitivo, à chegada do nosso grupo.
As aves assinalam uma presença única no ecossistema da Morraceira. Às garças brancas junta-se a garça real e sua imponência de respeito, o pato bravo, e uma ou outra águia, focada na sua caçada solitária.
Mas o ex-libris da ilha está destinado ao flamingo. Dono de um corpo de sereia, de perna fina e comprida e pescoço curvilíneo, goza de uma elegância sem igual, qualquer que seja o enquadramento e o ângulo de visão. As suas poses, de variações infinitas e beleza inalterável, fazem as delícias de qualquer olhar. Andam sempre em bando, e por vezes a Morraceira oferece a sorte de juntar largas centenas, proporcionando uma floresta de flamingos de formusura indescritível. Vê-los depois partir para outras paragens, eles que são tão sensíveis à presença humana, é outro espetáculo digno de figurar para sempre nas nossas memórias.
Havemos de nos cruzar com eles mais vezes ao longo da caminhada. Apesar de hoje se apresentarem em número mais reduzido, não cansam de ver.
Se a passarada é presença assídua da paisagem, que dizer das dezenas de canais de água e da flora que a rodeia? Para além do sal, a ilha serve de sustento para alguma aquacultura de qualidade: a abertura regular das comportas traz consigo uma grande variedade de espécies, desde o caranguejo ao robalo, passando pelo sargo, dourada e linguado.
Vale a pena ouvir do Luís a história sobre as “despescas”.
Os juncos são também um género botânico dominante da Ilha da Morraceira, noutros tempos utilizado intensamente como cama de gado e depois como adubo, e ainda hoje utilizado para o fabrico artesanal de cestaria.
A diversidade botânica surge a bom ritmo, de qualquer lado e nas zonas mais oportunas. A natureza sabe bem o que faz. Temos a gramata branca em abundância, a morraça – que dá o nome à ilha – e seu pomposo nome científico Spartina Maritima, e a agora famosa salicórnia, que tem encontrado usos cada vez mais criativos nas cozinhas mais elaboradas, cujos campos proporcionam paisagens deslumbrantes, a fazer lembrar os também belos campos de arroz de regiões próximas.
O final de tarde avança sereno, com encontros esporádicos com novas famílias de flamingos.
O sal, que entretanto deixara de fazer parte das nossas panorâmicas, volta ao nosso contacto visual. Chegamos à mais bonita das salinas, rodeada de um verde que nos é mais familiar, onde se incluem oliveiras, nespereiras, medronheiros e… figueiras.
Não é raro, aliás, encontrarmos plantações diversas, cultivadas e cuidadas pelos produtores de sal. Cada pedaço de terreno é aproveitado. E podemos afirmar que em cada recanto, em cada buraquinho, se esconde um pequena dádiva da natureza. Pormenores que não escapam à atenção do Luís Carlos e que acrescentam um valor extra a esta caminhada.
Caminhamos, no verdadeiro sentido da palavra, para um passeio que já vai longo, atestado apenas pelos ponteiros do relógio e pelos músculos mais vulneráveis. Na verdade, o tempo na Ilha da Morraceira como que abranda. Não espanta pois que os produtores usem alguns dos armazéns para preparar refeições tardias ou para pernoitar : o trabalho vence as horas, que não esperam, e o acordar nas salinas é madrugador, ao ponto de não compensar uma ida a casa.
Regressamos, não sem antes passarmos por uma das áreas em ascensão na ilha – a produção de algas cresce de importância, com as suas aplicações altamente diversificadas, justificando a aposta e encontrando na Morraceira o seu espaço de eleição.
As ostras, segredam-nos, são outro dos produtos a ganhar notoriedade e de uma qualidade ao nível do melhor que há no mundo.
Aproxima-se o final apoteótico, tão característico de quase todo o lugar na Figueira da Foz, e que na Ilha da Morraceira encontra um cenário ainda mais magnífico.
Marcamos aqui a despedida, deixando este pôr-do-sol falar por si. Ou será pôr-do-sal?