A Figueira da Foz Sou Eu
O exercício é mais difícil do que antecipava – Como sinto a Figueira da Foz? Disse que sim, mas já me arrependi, porque falar da Figueira não é para mim o mesmo que falar de Coimbra, onde estudei, ou de Florença, ou de Lisboa ou de Aveiro, cidades por onde também passei. Eu ainda não saí da Figueira, porque me sinto parte dela e sinto que é parte de mim, e não há nada mais difícil do que falar de algo do qual não nos conseguimos distanciar.
Dizem que as infâncias felizes podem estragar a idade adulta, porque a expectativa fica tão alta que é difícil fugir à desilusão. Crescer na Figueira talvez seja parecido, porque nenhuma outra cidade será nunca tão bonita (mesmo que o seja, ou ainda mais), nem tão livre, nem tão cheia de céu e de mar. Talvez as infâncias e as juventudes passadas na Figueira sejam responsáveis por haver tantos artistas,
escritores e criadores figueirenses, talvez estes procurem algo que não voltaram a encontrar, talvez o horizonte desmesurado, ou o Verão frenético seguido de um Inverno deprimido, talvez.
A cidade era pequena, mas tinha luxos cosmopolitas, como um casino, um festival internacional de cinema, uma loja de discos onde chegavam as novidades de Manchester ou do Rio de Janeiro, uma das melhores discotecas do país, a maior praia e a melhor gelataria. A cidade era pequena, mas as ideias eram grandes e a cultura alimentava-as constantemente. Éramos do tamanho do que víamos, sem nada que nos roubasse os horizontes físicos ou outros imaginados. Era e é uma cidade de luz, de espaço, de vagar e de silêncios, votada à contemplação e ao devaneio, à festa e ao recolhimento.
Regresso sempre que posso, tenho família na Figueira, tenho casa, tenho muitos amigos e tenho lugares que visito numa via-sacra da memória, onde faço as minhas rezas profanas, recupero memórias e desperto em mim o figueirense que nunca deixei de ser. Descubro nesses momentos, como se fosse possível esquecer, que sou a Figueira e que a Figueira sou eu, por vezes fragoso como o Cabo Mondego, outras sereno como as salinas, altivo como a Boa Viagem, revolto como o oceano, luminoso como a praia ou triste como ela.
Regresso à pergunta e salto das ideias para o corpo, porque são veias, tendões e ossos as ruas da cidade, conheço-lhes o cheiro como o da minha pele, a luz como o reflexo que me é devolvido pelo espelho. Perguntam e então respondo – Como sinto a Figueira da Foz? Pois como me sinto a mim.