“Experiências By…”, é a designação de um excelente projeto da Turismo Centro de Portugal, que desenha percursos com base na vida e no imaginário de escritores naturais de concelhos da região. O figueirense e multi-premiado Afonso Cruz foi o autor escolhido como mote para um belo passeio “espiritual” pelo nosso concelho, primeira etapa de um périplo que inclui Tomar e Batalha. Com a devida autorização da entidade regional de Turismo, temos o prazer e a honra de publicar aqui no Meet o excerto dedicado à Figueira da Foz, aconselhando vivamente os nossos leitores a descobrirem melhor o resto da região, pelo olhar dos nossos escritores: Um Roteiro Literário pelo Centro de Portugal.
Afonso Cruz nasceu na Figueira da Foz, terra do pai e dos avós. Regressa com alguma frequência aos lugares de infância e de memórias das longas férias de verão que se esticavam por três meses. Os dias de sol nas praias ao pé de casa. Os almoços frente ao mar ou no alto da Serra da Boa Viagem ao fim de semana. As idas a pé de Buarcos à biblioteca da Figueira para ler e requisitar livros. Os gelados que se comiam com prazer e vontade de criança. O papagaio cinzento que falava com quem passava junto ao mercado. A caixa de marionetas que se abria como um mundo mágico frente à Casa Havanesa, na altura livraria, antes casa de fotografia de dois irmãos que abrigaram refugiados durante a II Guerra Mundial.
Mar, Praias, Serra, Sal, Comboio, Enguias, Flamingos
Nessa rua, mais abaixo, na Cândido dos Reis, o avô tinha um estúdio de fotografia num edifício de traça antiga, montra de mármore, onde trabalhou mais de 40 anos e onde revelou histórias e momentos marcantes em imagens a preto e branco. Afonso Cruz nasceu na Figueira da Foz em 1971.
O avô tinha o estúdio fotográfico na rua lateral do Casino, quem desce na Rua Cândidos dos Reis, num edifício que já não existe. Afonso Cruz passava muito tempo nessa zona da cidade. Todos os dias, depois de almoço, o avô tomava café no Nicola. Iam juntos pelo centro da cidade, atravessavam o jardim, passavam pelo mercado, e num largo, o café central, o Nicola, que hoje é um restaurante.
O avô fotógrafo Afonso Cruz (partilham o mesmo nome) tem uma sala de exposições com o seu nome no Centro de Artes e Espetáculos da Figueira da Foz. Edifício luminoso e airoso, sala de espetáculos da cidade, sala de estar de artistas de várias expressões, com café e restaurante, com vista para o Parque das Abadias, um espaço para aproveitar com calma, com árvores que separam a estrada de betão do lugar verdejante.
Durante a Segunda Guerra Mundial, no século passado, os avós da Figueira esconderam em sua casa um artista plástico judeu até ele conseguir um visto para os Estados Unidos. Ivan Stern Sors deixou algumas obras na cidade, uma delas, a aguarela Tipo de Buarcos – Lobo do Mar, está exposta no Núcleo de Arte Contemporânea Laranjeira Santos, junto à marginal da Figueira, com vista de mar e para a Torre do Relógio, junto ao Picadeiro. É um dos edifícios mais emblemáticos da cidade, conhecido como o Castelo Engenheiro Silva, presume-se que terá sido uma das primeiras habitações a ser construída no Bairro Novo de Santa Catarina. A aguarela de Sors está no terceiro e último piso do novo espaço museológico, que abriu ao público em setembro de 2020, e que acolhe várias esculturas de Laranjeira Santos que por amor adotou Figueira da Foz como sua terra.
A naturalidade de Sors não é consensual, eslovaco, checo, húngaro. Nos jornais da época, conta-se que estudou pintura e escultura na Escola de Belas-Artes de Praga, que retratou e caricaturou as maiores figuras da política, arte, literatura, ciência, teatro e jornalismo, de todo o mundo. Viveu exilado em Paris, escreveu para jornais da capital francesa, expôs em Nova Iorque. Mestre em pormenores etnográficos, fala-se que é autor de uma boa coleção de tipos de gente do mar, terá caricaturado meia Figueira da Foz. Afonso Cruz, o avô, abrigou Sors. Afonso Cruz, o neto e escritor, inspirou-se nessa história e escreveu O Pintor Debaixo do Lava-Loiças. Livro que mostra que a liberdade pode acontecer em espaços tão apertados quanto um lava-loiças de um fotógrafo da Figueira da Foz, o seu avô Afonso Cruz. O judeu Sors, a fugir do nazismo, partiu da Figueira e deixou pinturas que retratam pescadores. Há uma aguarela de uma mulher de xaile com filho nos braços como que à espera do amor que se fez ao mar.
Afonso Cruz, o neto e escritor, inspirou-se nessa história e escreveu O Pintor Debaixo do Lava-Loiças
Figueira da Foz é mar, areia que se estende até ao Atlântico, barracas de praia, marginal comprida, salinas e arrozais. No inverno, há colónias de flamingos vindas de Espanha e de França que procuram as zonas húmidas junto às salinas para se alimentarem. Migram em bando, mostram-se de vez em quando num vislumbre paisagístico de grande impacto visual. São flamingos de tonalidade rosada, cor que vem da artémia, pequeno crustáceo que é a base da alimentação dos animais de finas patas. Num outro tempo, num outro século, a ilha da Morraceira tinha salinas, arrozais e um aeródromo na margem esquerda do Mondego. O Campo de Aviação Humberto da Cruz, oficial-aviador irmão do avô de Afonso Cruz, que fez a primeira viagem aérea até Timor.
Figueira da Foz é mar, areia que se estende até ao Atlântico, barracas de praia, marginal comprida, salinas e arrozais
O reencontro com a natureza é um ato religioso, não instituído, não formal, que transforma e altera. Figueira da Foz é diversa naturalmente. Em Quiaios, a norte, há praias tranquilas que são possíveis de frequentar em agosto, caso o clima faça a vontade. Figueira convida a passeios junto ao mar, desde o porto até ao Cabo Mondego, passando por Buarcos e pelas suas muralhas onde o mar chegava, a Fortaleza de Buarcos faz parte da Rede de Castelos e Muralhas do Mondego, culminado com uma visita à Serra da Boa Viagem. Sobe-se com o mar ao lado, observa-se a formação calcária da serra, camada sobre camada de rocha, miradouros que puxam o olhar para o imenso Atlântico, para o extenso areal, as praias de Buarcos, da Figueira, do Cabedelo. Lá em baixo, o Farol do Cabo Mondego, no parque florestal da Serra da Boa Viagem, pontua a paisagem na contraluz do pôr do sol e, porventura, de algum navio que vai na sua vida. O farol é bonito de ser ver, um edifício com torre branca em forma de quadrado, 15 metros de altura, lanterna branca, varandim e cúpulas vermelhos. Um imóvel de interesse municipal.
A Mesa, Lugar de Convívio, de Celebração, de Rituais
A religião também é feita à volta de uma mesa, lugar de celebração e comunhão, de encontro e convívio, de momentos festivos, de rituais, de espiritualidade. À mesa contam-se histórias, partilham-se momentos, cumprem-se crenças, respeitam-se tradições. Celebra-se a vida, a família, os amigos, o amor. Afonso Cruz gosta muito de enguias e, às vezes, faz viagens de propósito por causa delas. Perto da Figueira da Foz, numa localidade chamada Moinho de Almoxarife, na fronteira com Soure e Montemor-o-Velho, comem-se belas enguias. Moinho de Almoxarife é acessível de comboio a partir da estação da Figueira da Foz. Não é longe, não são muitos minutos. A viagem é feita junto ao Mondego, com vista para campos de arroz e alguns flamingos quando se deixam ver, até à Bifurcação de Lares, onde a linha do caminho de ferro se divide em duas, a do Norte a nascente, a do Oeste a Poente.
O comboio atravessa o Mondego por uma antiga ponte de ferro que impregna a viagem de uma beleza mágica e estética, quase nostálgica até. O som do ferro com ferro, a paisagem, a vista, cenários naturais que pontuam o percurso quer se olhe para a direita, quer se olhe para a esquerda. Em Moinho de Almoxarife, num restaurante de esquina, numa bifurcação de ruas, cozinham-se enguias, servem-se fritas e crocantes e em caldeirada servida em tacho quente posto sobre a mesa. As enguias são um peixe misterioso, esguio e estranho, com uma dose de espiritualidade q.b..
A peregrinação das enguias. Sim, a peregrinação das enguias. Afonso Cruz leu a sua história, características e curiosidades, e a viagem de mais de quatro mil quilómetros. É peixe obstinado, teimoso, que nasce e morre no mesmo mar. As enguias nascem no mar dos Sargaços, zona alongada no meio do Atlântico Norte, o único mar sem costa que não banha nenhum país. As enguias atravessam o oceano ainda quase sem formas, como larvas que começam por ser, até à costa europeia. É peixe de mar que se transforma em peixe de rio, que pode viver 20, 30, 60 anos, ninguém sabe bem. Instalam-se e espalham-se pelo litoral da Europa. Vivem ou são pescadas. E, a dado momento, fazem o caminho de volta, regressam ao mar dos Sargaços para desovar, ficam sem estômago, barriga cheia de ovas, cheia de crias, podem passar quatro anos sem comer. É uma peregrinação. É um caminho espiritual. ( … )
Conheça aqui o Roteiro Espiritual de Afonso Cruz (pdf)
Créditos fotográficos: Turismo Centro de Portugal